Tuesday, February 15, 2011

Na Colônia, era pega, mata e come

Na Colônia, era pega, mata e come
Por Maria da Paz Trefaut, de São Paulo
28/10/2008

A dualidade entre a fome e a fartura, ainda recorrente nos dias de hoje, era uma das principais características da sociedade brasileira no período colonial. Nesse Brasil, difícil de imaginar sem a sombra dos coqueiros, mangueiras ou jaqueiras, o padre José de Anchieta comia preás, rãs e serpentes, enquanto Manuel da Nóbrega se queixava de comidas "difíceis de engolir". Se a fome era parte da jornada dos missionários e aventureiros, eram faustosos os banquetes senhoriais e havia abundância nas refeições de trabalhadores e escravos.
Francisco Hernadez

Quem relata esses pormenores é a pesquisadora carioca Sheila Moura Hue, coordenadora do Núcleo Manuscritos e Autógrafos do Real Gabinete Português de Leitura, que lança na próxima semana "Delícias do Descobrimento", pela editora Zahar (R$ 34). O livro, fruto de três anos de investigação em documentos de época, traça um panorama do que se comia no primeiro século após a chegada de Cabral e mostra a importância da alimentação no diálogo entre vários grupos sociais. A comida foi, desde muito cedo, um elemento de interação entre índios, escravos, viajantes, missionários e exploradores europeus.

Frei Cristóvão de Lisboa
Segundo a autora, especialista no Renascimento Português, os relatos do século 16 descreviam a fauna e a flora "com intenção de amplificar as qualidades do Brasil para mostrar que o país era habitável e viável, de forma a atrair novos investimentos". Em suas descrições, os cronistas quinhentistas juntam botânica, zoologia, comércio, medicina, agricultura e etnografia entre outros saberes e formas de observar. Baseado nesses textos e tendo as cartas dos jesuítas como uma fonte de referência, Sheila Hue faz uma descrição detalhada do cardápio do período. Fala sobre aves, peixes, invertebrados aquáticos, répteis, anfíbios e insetos. A seguir, uma amostra resumida de suas conclusões.

Fome x fartura. Nas viagens terrestres de desbravamento dos sertões, aventureiros, exploradores e jesuítas passaram muita fome. Comeram coisas surpreendentes, como cobras e sapos (que ao longo do século seriam alimentos apreciados por todos), e até escudos de couro de anta torrados e fetos de golfinho assados (em casos extremos de fome). Nas vilas de colonos e nas povoações indígenas havia fartura. Além dos animais e plantas nativos, a cozinha colonial contava com produtos trazidos dos quatro continentes e aclimatados aqui: vacas e cabras da Europa, inhame africano, frutas e legumes europeus, canela e gengibre do Oriente. Uma cozinheira portuguesa que chegasse à Bahia na década de 1580 ia encontrar todos os legumes, verduras, carnes e temperos que estava acostumada a usar em Portugal. Só não encontraria farinha de trigo, e aprenderia a fazer bolos com a fina farinha indígena de mandioca, a carimã. Para os doces, em vez das amêndoas (que não havia aqui), usaria produtos locais como amendoim, raiz de taioba e castanha de caju. Já nessa época, a comida não se relacionava apenas à alimentação. Tinha significado em praticas religiosas e era associada à medicina, tanto que as compotas de frutas funcionavam mais como remédios do que como sobremesa.

Preconceitos. Havia menos preconceitos gastronômicos do que hoje. Comia-se de tudo: macaco, peixe-boi, formigas, sapos, bicho-de-taquara, cobras, roedores, e até girinos. Os portugueses assimilaram toda a alimentação indígena (animais e plantas) e comiam também os animais que os índios não ingeriam por tabu. Os índios, ao contrário, não assimilaram os produtos e hábitos europeus. Criavam galinhas (como moeda de troca), mas não as comiam, só as vendiam. A única exceção seria o vinho. De imediato não gostaram da bebida, mas há testemunhos de que já na década de 1580 era o produto europeu pelo qual tinham predileção. O palmito, que hoje é considerado nobre, era um alimento associado à fome e só se comia em viagens pela mata quando não havia outra opção.
Frei Cristóvão de Lisboa

Marmelada de abóbora. As abóboras já eram parte da dieta indígena antes da chegada dos portugueses. Segundo o padre José de Anchieta, a marmelada de abóbora - como os portugueses chamavam a geléia - era enviada para Lisboa para tratar jesuítas doentes. Curiosamente, o "Livro de cozinha da infanta D.Maria", compilado em Portugal no século 16, oferece um receita de marmelada de abóbora que exigia mais de 15 dias entre fervuras e resfriamentos, mas que não levava açúcar. A compota era famosa até na França, onde o astrólogo e alquimista Nostradamus, invocado sempre que se buscam sinais sobre a proximidade do apocalipse, dizia que o doce era bom para "mitigar o calor exuberante do coração e do fígado".

Sobre unanimidades e iguarias. O tatu era uma das carnes mais apreciadas por colonos e índios e uma unanimidade entre os diferentes paladares europeus. Sua aparência maravilhou cronistas e viajantes e o animal foi descrito de diversas formas. Como "um cavalo armado", com "focinho de leitão", "dentes de gato" ou "unhas de cão". Presente na mesa quinhentista assado ou cozido, fez parte das observações do jesuíta Fernão Cardim e de Hans Staden. Outros hábitos dos índios, por mais estranhos que pareçam, conquistam o paladar dos europeus. O mais curioso nesse quesito são as formigas iças ou tanajuras (fêmeas aladas de diversas variedades de saúvas), uma delicatessen indígena. Numa carta remetida da então vila de Piratininga, que viria a ser a cidade de São Paulo, Anchieta escreveu: "Agora esperamos um certo gênero de formigas e temo-las aqui por manjar delicado. Esmagadas cheiram a limão."

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