Sunday, March 13, 2011

O etanol rumo a 2020

O etanol rumo a 2020

Maurilio Biagi Filho maubisa@maubisa.com.br
Postado em 09 de Agosto de 2010 às 09:08 na categoria Artigo

O final da primeira década do ano 2000 prenuncia uma nova era repleta de desafios para os empresários brasileiros que permanecerem na agroindústria canavieira, o segmento da economia nacional mais impactado pelas disputas globais por combustíveis renováveis.

Em nenhum momento da História do Brasil a produção de cana e derivados apresentou números tão superlativos como agora: mais de 8 milhões de hectares cultivados, dois milhões de empregos diretos, produção de 35 milhões de toneladas de açúcar e de quase 30 bilhões de litros de etanol, além de uma contribuição que se aproxima dos 10 bilhões de dólares para a balança comercial brasileira – tudo isso sem contar a economia resultante da não importação de 400 mil barris/dia de derivados de petróleo substituídos pelo etanol.
A mais antiga lavoura brasileira, cuja implantação se confunde com o nascimento do país, já deixou para trás, sucessivamente, as eras dos senhores de engenho do Nordeste, dos barões do açúcar do Sudeste e dos usineiros ou coronéis da cana estabelecidos em latifúndios familiares no interior.

A modernização do setor deu um salto na década de 1970, quando o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) propiciou a implantação de dezenas de destilarias autônomas por empresários rurais que abriram terras de pastagens para o cultivo da cana. Num segundo momento, nos anos 80 e 90, esses pioneiros passaram a produzir açúcar também. Até que, a partir de 2000, inaugurando a fase dos IPOs (sigla em inglês de Oferta Pública Inicial—de ações), os grupos Cosan, Guarani e São Martinho abriram seu capital.

Logo em seguida algumas das maiores tradings agrícolas do mundo ocidental associaram-se a grupos brasileiros produtores de açúcar e álcool. Só para lembrar os lances mais conhecidos: Cargill-CEVASA, ADM-Cabrera, Bunge-Santa Juliana e Dreyfus-Tavares de Melo. Outros estão a caminho.

SOB A LUZ DE KYOTO
Agora, em plena vigência do Protocolo de Kyoto, que desde 2005 estabeleceu metas para a despoluição atmosférica, a agroindústia canavieira do Brasil recebe investimentos de algumas das principais companhias petrolíferas do mundo. É o etanol entrando na era do Big Oil. Para atender às demandas oriundas da nova ordem ambiental no planeta, a Petrobras, a British Petroleum, a Shell e outras petroleiras apostam em energias renováveis e, especialmente, em tecnologias que possibilitem a captura do CO2.
Com isso, não só atendem ao mercado como prolongam a existência de suas reservas de petróleo, cada vez mais escassas ao redor do mundo. É um contexto absolutamente novo, promissor e arriscado para os produtores brasileiros de etanol, que carregam na alma – e no bolso—as marcas da descontinuidade das políticas públicas no campo dos combustíveis.

Mesmo alternando bons e maus momentos, o mercado de etanol está consolidado graças sobretudo ao pioneirismo de grandes empreendedores, que vislumbraram no álcool de cana uma alternativa à dependência do petróleo. O Brasil produzia 500 milhões de litros de álcool por ano quando um grupo de líderes da agroindústria canavieira apresentou ao Presidente Geisel, em 1974, o estudo “Fotossíntese como Fonte Energética”. Ele acenava com uma saída agrícola para a crise do petróleo.

Foi o estopim do Proálcool, o primeiro programa mundial para a produção de um combustível renovável. Graças a ele, o Brasil se tornou uma referência internacional, destacando-se os pólos industriais de Piracicaba e Sertãozinho, no interior paulista. Dezenas de acordos tecnológicos com parceiros nacionais e estrangeiros promoveram uma notável evolução nos processos de produção de álcool e açúcar. Também nos canaviais houve um avanço extraordinário. Nos últimos 35 anos, a produtividade global (agrícola+industrial) da canavicultura brasileira cresceu mais de 3% ao ano, em média.

Ao êxito agroindustrial correspondeu uma vitória comercial e logística sem precedentes na história da civilização do petróleo. Em 1989, pela primeira vez no mercado brasileiro, o consumo de álcool ultrapassou o de gasolina. Em cada um dos 20 mil postos de abastecimento então existentes no país, os comerciantes de combustíveis instalaram pelo menos uma bomba de etanol, numa rara demonstração de confiança no futuro. Naquele mesmo ano, nossa indústria automobilística equipava mais de 98% dos veículos produzidos com motores a álcool. “Carro a álcool: você ainda vai ter um”, dizia um anúncio da época.

Tamanho fortalecimento do etanol como combustível somado à adesão da indústria automobilística passou a contrariar os interesses do setor de combustíveis fósseis. Embora o governo tivesse órgãos para ordenar tanto a produção (Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA) quanto o abastecimento (Conselho Nacional de Petróleo e Departamento Nacional de Combustíveis), um descontrole nos estoques fez faltar álcool no mercado, comprometendo seriamente a imagem do produto. A crise daí decorrente durou mais de 10 anos, encerrando-se formalmente em 2003, quando a indústria automobilística do Brasil lançou o primeiro carro flex fuel, com motor a gasolina, mas adaptado para a combustão do etanol.

A REASCENSÃO DO ÁLCOOL
Atualmente, quase vinte anos depois do apagão do Proálcool, 93% dos carros brasileiros saem das fábricas com motores flex fuel e, outra vez, o consumo de gasolina foi superado pelo de etanol, hoje comercializado em quase 40 mil postos espalhados pelo país. O grande crescimento da demanda por etanol no Brasil e no mundo se refletiu em novos projetos de produção especialmente em São Paulo, Minas e Goiás. Somente nesta safra, segundo a União da Indústria Canavieira (UNICA), estão entrando em operação 22 novas destilarias.

As usinas brasileiras quebraram pela primeira vez a barreira da produção de 100 milhões de toneladas de cana-de-açúcar na década de 1970. Em 2002 o recorde já estava em 292 milhões de toneladas e, em 2009, processaremos 614 milhões de toneladas de cana, que se transformarão em quase 30 bilhões de litros de etanol e 35 milhões de toneladas de açúcar. É uma expansão que só encontra dois paralelos na história da agricultura brasileira: o boom da soja a partir dos anos 1970 e o avanço da cafeicultura no interior paulista na segunda metade do século XIX.

Embora o açúcar venha crescendo junto com o etanol, foi a necessidade de fabricar volumes crescentes do combustível renovável que turbinou a agroindústria verde-amarela, a ponto de despertar o interesse de capitais estrangeiros.

No início desta década, a participação de capital externo no setor sucro-alcooleiro do Brasil era de menos de 1%. Atualmente, sem contar os investimentos nas três companhias que possuem capital aberto — os grupos Cosan, São Martinho e Guarani --, mais de 20 conglomerados internacionais comandam ou fazem parte da direção de usinas brasileiras. Ainda que a fatia estrangeira não tenha passado de 20% dos ativos, acredita-se que as empresas de fora participam, de alguma forma, da decisão empresarial sobre cerca de 30% da cana processada atualmente. Esses dados conferem ao etanol o status de grande opção de negócio global, no momento em que os principais países do mundo buscam alternativas para a redução da emissão de gases de efeito estufa.

A tendência para os próximos anos é de aumento dessa participação externa, principalmente pelo fato de diversos projetos greenfields, com participação estrangeira, estarem em fase de construção. A British Petroleum, que tem investido em projetos greenfields nos Estados Unidos, a partir de parcerias com empresas produtoras de etanol, comprou participação na Usina Tropical, em Edéia, no estado de Goiás, para a produção de açúcar, etanol de primeira geração e biodiesel, a partir da moagem anual de 2,3 milhões de toneladas de cana.

A INTERNACIONALIZAÇÃO DO ETANOL
A era da internacionalização do etanol configura-se não apenas pelos investimentos das grandes empresas petrolíferas, mas pelos projetos para o desenvolvimento de tecnologias para a produção do etanol de segunda geração ou etanol celulósico. A produção de etanol a partir do bagaço da cana-de-açúcar, do sabugo do milho, de capim, casca de árvore, pneus e até de lixo urbano, consiste em usar enzimas, micro-organismos ou ácidos para separar os açúcares existentes na biomassa e, a partir daí, produzir combustível. Embora o potencial de produção seja elevado, ainda há dúvidas quanto ao custo final desse biocombustível de segunda geração.

O cenário internacional francamente positivo para o etanol coloca o setor sucro-alcooleiro numa posição estratégica, apesar do baixo preço do produto no momento, consequência da crise financeira vivida pelos mercados. Momentaneamente fragilizados, pois muitos tiveram de vender abaixo dos custos de produção, os produtores brasileiros de etanol devem estar atentos às oportunidades que se apresentam nesse momento de transição. É preciso aproveitar as experiências acumuladas no passado e a posição de vanguarda na produção de derivados de cana, estabelecendo parcerias vantajosas para desenvolver tecnologias de produção de etanol de segunda geração.

A anunciada entrada da Petrobras no setor, como sócia minoritária de usinas e destilarias, representa um marco na história da agroindústria mais antiga da economia brasileira. Disposta a se tornar um dos cinco maiores players mundiais do setor de combustíveis, a empresa descortina a possibilidade de produzir a primeira gasolina verde do mundo, com investimentos na ordem de 2,8 bilhões de dólares em projetos na área de biocombustíveis. A estatal brasileira de petróleo já se associou à Usina de Açúcar e Álcool Itarumã, no estado de Goiás.

A visão da Petrobras, da qual compartilho, é que o consumo do etanol crescerá no mercado internacional não tanto como combustível isolado, mas como aditivo — oxidante da gasolina. Nos próximos anos diversos governos tendem a exigir o aumento dos percentuais de misturas de etanol nos combustíveis fósseis, visando reduzir as emissões de gases de efeito estufa nas grandes cidades e, ainda, tornar a gasolina mais barata para os consumidores. Na última década, de acordo com a Petrobras, as vendas de etanol em todo o mundo cresceram dez vezes. Em 2020, segundo o presidente Sergio Gabrielli, o etanol responderá por 75% do consumo de combustíveis automotivos no mercado brasileiro.

UM GRANDE MERCADO FUTURO
Está configurado assim um grande mercado futuro. O etanol ainda não foi transformado numa commodity, mas tende a ser. O setor, se souber organizar eficientemente a comercialização, a logística do abastecimento doméstico e o esforço exportador, dispensando o amadorismo e a improvisação, pode superar suas dificuldades e dar os passos que faltam para tirar vantagem das mudanças em andamento no mercado mundial de combustíveis renováveis. O espírito da coisa foi resumido pela frase feliz de Adhemar Altieri no II Ethanol Summit, em junho de 2009, em São Paulo: “Temos que ir além da história de que colocar álcool no carro é mais barato”, disse ele.

É fundamental que o setor sucro-alcooleiro alcance a maturidade empresarial, o que significa perseguir menos os recordes de produção e mais a melhora dos índices de rentabilidade e a organização da oferta. Tutelada pelo governo durante várias décadas, a indústria canavieira ainda não aprendeu a vender em 12 meses o que produz em oito. Um simples desequilíbrio entre a oferta e a demanda, reforçado pela retração do crédito bancário, gerou uma profunda crise de liquidez a partir do terceiro trimestre de 2008.

Mesmo passando por momentos de sufoco, o setor acumulou experiência suficiente para saber que a transformação de biomassa em carburante é uma alavanca econômica polivalente que, além de gerar renda, cria empregos no campo e na cidade. A cana é auto-suficiente energeticamente, pois além de produzir toda a energia do processo produtivo, também gera um excedente que pode ser vendido para as companhias de eletricidade. Atualmente são mais de 8 mil MW de potência instalada nas usinas de cana. Para 2020, prevê-se que a geração de energia a partir da queima do bagaço e da palha será de 28 mil MW, o dobro da capacidade da hidrelétrica de Itaipu.

Os brasileiros construíram um modelo energético único na economia mundial. Temos a matriz energética mais limpa do mundo, com praticamente 50% de fontes renováveis, das quais 31,5% são provenientes de biomassa, seja ela florestal ou agrícola. A cana-de-açúcar já responde por nada menos que 16% da energia gerada no país.

Entretando, se quisermos vender a solução verde-amarela no mercado internacional, precisamos construir parcerias empresariais e fazer acordos com outros países. É um jogo que exige paciência e perseverança, pois os mercados de alimentos e de biocombustíveis estão sujeitos a grandes distorções em consequência do protecionismo dos países do hemisfério norte.

Quase todos os países do mundo querem produzir seu próprio biocombustível, tornando-se menos dependentes dos combustíveis fósseis. Aqueles que tiverem terras disponíveis e clima favorável não hesitarão em produzir etanol ou outro aditivo para a gasolina e o óleo diesel. Nesse sentido, o Brasil não deve buscar apenas vender bilhões de litros de álcool, mas também pacotes de engenharia, equipamentos e tecnologia agrícola.

Cabe aos empresários brasileiros aproveitar a oferta de financiamentos pelo Banco Mundial e outros órgãos das Nações Unidas como a FAO para ajudar na estruturação de setores produtivos de etanol na América Latina, na África e em outros continentes. Em nenhum lugar o modelo brasileiro de cultivo de cana encontra campo mais propício do que no continente africano, onde já operam diversas empresas brasileiras. Ali se pode destacar a função sócio-econômica da produção de açúcar e álcool, como meio de redistribuição de riqueza.

O PETRÓLEO NÃO É INIMIGO
Está provado que o etanol é um eficiente instrumento de mitigação das emissões de gases de efeito estufa. Para que se organize um mercado global para o etanol regulamentado, falta definir quem vai fazer o quê e como. É preciso ter ações coordenadas e planejadas entre todos os setores produtores de etanol do mundo. Independentemente de quais sejam as fontes (cana, milho, beterraba, etc), a agroenergia tem condições de assumir um papel de destaque nas negociações da Organização Mundial de Comércio (OMC) e em outros foros internacionais.

Nesse contexto, não faz sentido criticar os produtores de etanol de milho nos EUA. Mesmo que o milho seja inferior à cana como matéria-prima energética, já é hora de encarar os usineiros norte-americanos como parceiros de alianças estratégicas que muito nos fortalecerão. Da mesma forma, não devemos ver o petróleo como um concorrente a ser vencido ou um inimigo a ser liquidado. O petróleo é o mais importante veículo de desenvolvimento para a indústria do etanol.

Independentemente do preço do petróleo, o etanol já é aceito internacionalmente como uma parte (pequena) da solução do problema do aquecimento global. Frequentemente, alguns observadores internacionais afirmam que a expansão dos canaviais ameaça a floresta amazônica. É uma denúncia maliciosa que precisa ser desmentida com veemência. Aos produtores de etanol não interessa desmatar e por fogo na coivara da floresta. As queimadas, que representam pelo menos 60% das emissões brasileiras de CO2, estão escandalosamente na contramão da História. Para as novas plantações de cana, basta uma pequena parcela das imensas terras improdutivas do Brasil Central e de outras regiões agrícolas tradicionais, inclusive no Sul.

Por tudo isso, vejo na agroenergia a possibilidade extraordinária de mudanças que resultarão no reequilíbrio de forças políticas globais. Como grande fonte de riquezas, a energia renovável tem potencial para distribuir renda e poder—prenúncio de uma nova e saudável ordem mundial.

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