A guerra contra o canguru
Matança promovida pela Austrália não contém
a superpopulação do animal-símbolo do país
VEJA Edição 1890 . 2 de fevereiro de 2005
José Eduardo Barella
Quantos cangurus a Austrália suporta? Os australianos estão enlouquecidos com 60 milhões deles pulando de um lado para o outro. São três para cada habitante. Vinte anos atrás, eram apenas 15 milhões. O número aumentou porque os predadores naturais começaram a desaparecer e porque, graças à ação humana, eles encontram suprimentos praticamente ilimitados de água e comida. Herbívoros, os cangurus devoram as lavouras e invadem os pastos para beber a água armazenada pelos criadores de ovelha. Não há cerca alta o suficiente para impedir a passagem de um animal que dá saltos de 2 metros de altura. Na capital, Camberra, vizinha de uma reserva florestal, eles passeiam por praças arborizadas e até pelos jardins do Parlamento. De hábitos noturnos, os cangurus aparecem ao cair da tarde. Os golfistas que jogam nesse horário já estão habituados a dividir o gramado com dezenas de marsupiais. Exceto por alguns pequenos grupos de radicais, que defendem a preservação total, até os ambientalistas concordam que é preciso impor limites. A dúvida é como fazer isso sem transformar a matança num espetáculo de crueldade contra os animais.
Para controlar a superpopulação e diminuir os prejuízos nas fazendas, o governo australiano permite que, a cada ano, sejam caçados entre 10% e 14% do total dos cangurus. O problema número 1: a caçada é cercada de tantas restrições que a cota jamais é atingida. No ano passado, dos 6 milhões autorizados, só foram abatidos 4,4 milhões. Problema número 2: mesmo que a cota fosse alcançada, estima-se que seria insuficiente para evitar sua proliferação. Cada caçador, devidamente licenciado, pode matar um número limitado de exemplares. Só se admite o uso de espingardas e a presa deve ser abatida com um tiro na cabeça. É proibido atirar de um veículo em movimento – o que facilitaria muito a caça dos cangurus vermelhos, que chegam a correr à velocidade de 50 quilômetros por hora, com saltos de 8,5 metros de distância. Se uma fêmea for atingida, sua bolsa deve ser examinada, pois pode abrigar um filhote. A cria deve ser morta com uma pancada na cabeça. Pode não parecer, mas essa é a maneira menos cruel de matar canguru.
A exploração comercial da caça é proibida em quatro estados australianos. Nesses lugares, a lei estabelece que os cangurus sejam etiquetados e enterrados na fazenda onde foram abatidos. O resultado é que poucos, caçadores ou fazendeiros, se interessam pela caçada. Em outras regiões, a exportação da carne e do couro de cangurus rende 112 milhões de dólares por ano, um negócio relativamente modesto se comparado aos 3 bilhões de dólares da exportação anual de carne bovina. A pele de canguru é vendida para fábricas de calçados, bolsas e bolas de futebol. Com apenas 2% de gordura e livre de hormônios, sua carne é considerada mais saudável do que a de gado ou de ovelha. Mas a maioria dos australianos reluta em comer o animal, que é o símbolo do país e que, quando está em pé nas patas traseiras, guarda desconcertante semelhança com o ser humano.
Pouco mais de 200 anos atrás, quando começou a colonização européia da Austrália, havia 53 espécies de canguru. Seis foram extintas e outras onze estão ameaçadas. Hoje, três tipos somam 90% da população: os maiores e mais comuns são os cangurus vermelhos, que chegam a pesar 90 quilos e, apoiados nas patas traseiras, medem até 2 metros de altura. Os outros dois tipos, menores, são o cinza oriental e o cinza ocidental. A superpopulação desse animal é atribuída a vários fatores, todos provocados pelo homem. O principal foi a diminuição de seus predadores naturais, como os lagartos gigantes e os cachorros selvagens, conhecidos como dingos. Essas espécies estão em extinção por causa da destruição da vegetação nativa australiana. O paradoxo é que a criação de gado favoreceu os cangurus. Antes, eles precisavam se deslocar no mínimo 10 quilômetros por dia para encontrar água. Só os mais fortes resistiam à seleção natural num território que é 70% desértico. Com a infra-estrutura montada nas fazendas de corte, os cangurus passaram a ter fartura de água em um raio de 3 quilômetros. "Quando há secas prolongadas, a população de cangurus cai muito", disse a VEJA o ambientalista australiano Bob Beale. "Se a caça se mantiver nos patamares atuais, só o clima será capaz de reduzir o número de cangurus nos próximos anos."
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