| A dualidade entre a fome e a              fartura, ainda recorrente nos dias de hoje, era uma das principais              características da sociedade brasileira no período colonial. Nesse              Brasil, difícil de imaginar sem a sombra dos coqueiros, mangueiras              ou jaqueiras, o padre José de Anchieta comia preás, rãs e serpentes,              enquanto Manuel da Nóbrega se queixava de comidas "difíceis de              engolir". Se a fome era parte da jornada dos missionários e              aventureiros, eram faustosos os banquetes senhoriais e havia              abundância nas refeições de trabalhadores e escravos. |                                                                        |                     Francisco Hernadez                        |    |                                               | Quem relata esses pormenores é a              pesquisadora carioca Sheila Moura Hue, coordenadora do Núcleo              Manuscritos e Autógrafos do Real Gabinete Português de Leitura, que              lança na próxima semana "Delícias do Descobrimento", pela editora              Zahar (R$ 34). O livro, fruto de três anos de investigação em              documentos de época, traça um panorama do que se comia no primeiro              século após a chegada de Cabral e mostra a importância da              alimentação no diálogo entre vários grupos sociais. A comida foi,              desde muito cedo, um elemento de interação entre índios, escravos,              viajantes, missionários e exploradores europeus.   |                                                                                                           |                     Frei Cristóvão de                    Lisboa                        |    |            Segundo a autora,              especialista no Renascimento Português, os relatos do século 16              descreviam a fauna e a flora "com intenção de amplificar as              qualidades do Brasil para mostrar que o país era habitável e viável,              de forma a atrair novos investimentos". Em suas descrições, os              cronistas quinhentistas juntam botânica, zoologia, comércio,              medicina, agricultura e etnografia entre outros saberes e formas de              observar. Baseado nesses textos e tendo as cartas dos jesuítas como              uma fonte de referência, Sheila Hue faz uma descrição detalhada do              cardápio do período. Fala sobre aves, peixes, invertebrados              aquáticos, répteis, anfíbios e insetos. A seguir, uma amostra              resumida de suas conclusões.  |                                               | Fome x fartura. Nas viagens              terrestres de desbravamento dos sertões, aventureiros, exploradores              e jesuítas passaram muita fome. Comeram coisas surpreendentes, como              cobras e sapos (que ao longo do século seriam alimentos apreciados              por todos), e até escudos de couro de anta torrados e fetos de              golfinho assados (em casos extremos de fome). Nas vilas de colonos e              nas povoações indígenas havia fartura. Além dos animais e plantas              nativos, a cozinha colonial contava com produtos trazidos dos quatro              continentes e aclimatados aqui: vacas e cabras da Europa, inhame              africano, frutas e legumes europeus, canela e gengibre do Oriente.              Uma cozinheira portuguesa que chegasse à Bahia na década de 1580 ia              encontrar todos os legumes, verduras, carnes e temperos que estava              acostumada a usar em Portugal. Só não encontraria farinha de trigo,              e aprenderia a fazer bolos com a fina farinha indígena de mandioca,              a carimã. Para os doces, em vez das amêndoas (que não havia aqui),              usaria produtos locais como amendoim, raiz de taioba e castanha de              caju. Já nessa época, a comida não se relacionava apenas à              alimentação. Tinha significado em praticas religiosas e era              associada à medicina, tanto que as compotas de frutas funcionavam              mais como remédios do que como sobremesa.  |                                               | Preconceitos. Havia              menos preconceitos gastronômicos do que hoje. Comia-se de tudo:              macaco, peixe-boi, formigas, sapos, bicho-de-taquara, cobras,              roedores, e até girinos. Os portugueses assimilaram toda a              alimentação indígena (animais e plantas) e comiam também os animais              que os índios não ingeriam por tabu. Os índios, ao contrário, não              assimilaram os produtos e hábitos europeus. Criavam galinhas (como              moeda de troca), mas não as comiam, só as vendiam. A única exceção              seria o vinho. De imediato não gostaram da bebida, mas há              testemunhos de que já na década de 1580 era o produto europeu pelo              qual tinham predileção. O palmito, que hoje é considerado nobre, era              um alimento associado à fome e só se comia em viagens pela mata              quando não havia outra opção. |                                                                        |                     Frei Cristóvão de                    Lisboa                        |    |                                               | Marmelada de abóbora. As              abóboras já eram parte da dieta indígena antes da chegada dos              portugueses. Segundo o padre José de Anchieta, a marmelada de              abóbora - como os portugueses chamavam a geléia - era enviada para              Lisboa para tratar jesuítas doentes. Curiosamente, o "Livro de              cozinha da infanta D.Maria", compilado em Portugal no século 16,              oferece um receita de marmelada de abóbora que exigia mais de 15              dias entre fervuras e resfriamentos, mas que não levava açúcar. A              compota era famosa até na França, onde o astrólogo e alquimista              Nostradamus, invocado sempre que se buscam sinais sobre a              proximidade do apocalipse, dizia que o doce era bom para "mitigar o              calor exuberante do coração e do fígado".  |                                               | Sobre unanimidades e iguarias. O              tatu era uma das carnes mais apreciadas por colonos e índios e uma              unanimidade entre os diferentes paladares europeus. Sua aparência              maravilhou cronistas e viajantes e o animal foi descrito de diversas              formas. Como "um cavalo armado", com "focinho de leitão", "dentes de              gato" ou "unhas de cão". Presente na mesa quinhentista assado ou              cozido, fez parte das observações do jesuíta Fernão Cardim e de Hans              Staden. Outros hábitos dos índios, por mais estranhos que pareçam,              conquistam o paladar dos europeus. O mais curioso nesse quesito são              as formigas iças ou tanajuras (fêmeas aladas de diversas variedades              de saúvas), uma delicatessen indígena. Numa carta remetida da então              vila de Piratininga, que viria a ser a cidade de São Paulo, Anchieta              escreveu: "Agora esperamos um certo gênero de formigas e temo-las              aqui por manjar delicado. Esmagadas cheiram a limão."         |     | 
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