
 Neste exato momento, sem que quase ninguém perceba,  uma perigosa invasão ocorre por todo o Brasil. O perigo desconhece  fronteiras naturais e políticas. A ameaça é uma forma de guerra  biológica silenciosa, capaz de aniquilar um dos orgulhos nacionais: a  megabiodiversidade brasileira. Os agentes de destruidoras batalhas são  organismos (animais e plantas) que vieram de outros continentes, quase  sempre trazidos pelo homem, involuntária ou deliberadamente. Quando se  instalam, estes organismos disputam espaço e alimento com as espécies  nativas, geram rombos na economia, alteram o meio ambiente e trazem  riscos à saúde humana.  
 Em escala planetária, o problema é tão grave que foi  considerado pela União para a Conservação Mundial (IUCN) como a segunda  maior causa de perda de biodiversidade. No balanço de danos, as  invasoras só ficam atrás da destruição direta de hábitats pelo homem, o  que inclui desmatamentos, queimadas e assoreamento de cursos d'água. O  estrago é estimado em US$ 1,4 trilhão, em termos globais. No Brasil, as  espécies invasoras 'devoram' algo em torno de R$ 49 bilhões a cada ano. A  princípio, não se desconfiava de que as invasoras pudessem causar tanto  estrago. A preocupação cresceu com novas avaliações que levaram a  Organização das Nações Unidas (ONU) a criar o Programa Global de  Espécies Invasoras (GISP), em 1997, com participação de mais de 100  países, Brasil inclusive. A mesma preocupação já aparecia na Convenção  da Diversidade Biológica, documento assinado em 1992, durante a Rio-92.
  
 No Brasil, um dos pioneiros no mapeamento das  espécies exóticas invasoras é o Instituto Hórus de Desenvolvimento e  Conservação Ambiental, uma organização paranaense que coordena, sob  encomenda do Ministério do Meio Ambiente (MMA), um mapeamento dos  animais e plantas que se tornaram problemas graves devido a introduções  feitas sem controle. Enquanto não sai o documento, a ser publicado em  2005, as pragas avançam. "Há enorme falta de  informações sobre a situação das exóticas no país. Sem esse mapeamento  ficaria difícil estabelecer um plano de ação nacional", diz Sílvia  Ziller, presidente do instituto. 
  
 A desatenção em relação ao problema e a lentidão nas  ações de combate já deram às invasoras numerosos pontos de vantagem.  Sabendo que muitas batalhas foram perdidas e muitas invasões são  irreversíveis, os esforços de controle estão cada vez mais focados em  mecanismos e programas de prevenção. "É preciso entender que o  estabelecimento de ações para controlar espécies exóticas deve priorizar  as invasões iniciais. Isso requer detecção precoce e ação rápida.  Erradicar uma espécie quando só existe um pequeno número de indivíduos  na natureza é mais fácil e custa menos do que tentar reverter invasões  já consolidadas", esclarece Silvia. Segundo dados do Instituto Hórus,  das 136 espécies exóticas invasoras catalogadas até o momento no país,  só 13,4% vieram de modo acidental. O restante entrou com a ajuda de  governos e de programas internacionais de desenvolvimento'. 
  
 "A importação de espécies obedece apenas ao critério  econômico. E pior: na maioria dos casos, só uns poucos se beneficiam  dos lucros enquanto os prejuízos são sempre socializados, com perdas  para o governo, a população e o meio ambiente", pondera o ecólogo e  pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),  William Magnusson. Entre as plantas invasoras mais  agressivas, estão diversos tipos de capim adotados por pecuaristas ou  para controle da erosão nas margens de rodovias, caso das braquiárias e  dos capins anonni, gordura e elefante. Um arbusto europeu, o tojo (Ulex europaeus),  também se espalhou pelos estados do Sul, reduzindo a disponibilidade de  alimento para a fauna e aumentando os riscos de incêndios. Outro  problema são as árvores polinizadas pelo vento, como os pinheiros do  gênero Pinus, que também ameaçam a diversidade de campos e cerrados naturais e nem sempre são percebidas como invasoras. 
  
 Entre os animais exóticos existem cerca de 60  espécies dispersas em 22 estados. Os invasores que mais preocupam,  devido à alta capacidade de dispersão, são o mexilhão-dourado (Limnoperna fortunei), o caramujo-gigante-africano (Achatina fulica), a rã-touro (Rana catesbeiana), o javali (Sus scrofa scrofa) e o búfalo (Bubalus bubalis),  todos "importados" para fins comerciais, exceto o mexilhão-dourado,  trazido da Ásia na água de lastro de navios cargueiros. A rigor, os  navios deveriam despejar água e todos os organismos intrusos em alto  mar, evitando a contaminação das regiões costeiras. Todavia, a  regulamentação internacional da atividade ainda viaja a reboque. Apesar  de medir só 3 cm, o mexilhão-dourado se adaptou bem e proliferou com  facilidade. Detectado nos rios da Argentina, em 1991, entrou no Rio  Grande do Sul pela Bacia do Prata. Invadiu tubulações de água nas  cidades e prejudicou motores de pequenas embarcações, causando prejuízo  econômico. Chegou às turbinas de Itaipu, onde se fixou em colônias  gigantescas. A aglomeração entupiu os filtros dos sistemas de  arrefecimento da usina, obrigando à paralisação regular das atividades  para limpeza. 
  
 Os peixes - que poderiam se alimentar dos mexilhões e  ajudar a evitar a propagação - são suas vítimas e não predadores. Uma  vez ingeridos, os moluscos retalham as vísceras dos peixes,  causando-lhes a morte. Sem controle, os invasores avançam, desafiando a  capacidade de ação do governo e da sociedade. O MMA criou uma  força-tarefa para tentar conter seu avanço, com ações em duas frentes:  controle da troca de água de lastro e combate ao rápido avanço do  molusco, já detectado nos rios do Pantanal. O plano esbarra nas  dimensões continentais do Brasil e nas dificuldades de se fiscalizar as  embarcações que circulam de uma bacia hidrográfica para outra. Além dos  barcos, as larvas do mexilhão grudam em equipamentos de pesca, viajam  junto com iscas vivas ou mesmo na carona de plantas aquáticas.
  
 Na costa nordeste do Brasil, os invasores também são  asiáticos. Introduzidos a partir de criadouros despreparados para  contê-los em seus limites, os camarões da Malásia e o Vanamey podem ser  capturados com mais facilidade do que as espécies nacionais de camarão.  No rio Negro, no Amazonas, de onde saem 92% dos peixes ornamentais  comercializados no país, a história se repete com duas espécies de  peixes exóticos: o Trichogaster trichopterus e a Poecilia reticulata. O  primeiro é um peixe omnívoro (come tanto vegetais como pequenos  animais), muito agressivo em relação a espécies menores. Natural da  Tailândia, adaptou-se tão bem, que hoje está presente na maioria dos  igarapés de Manaus, a mais de 400 km da área de soltura irresponsável,  rio abaixo. O segundo chegou ao Brasil em 1922, trazido pelo extinto  Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) para combater o  mosquito transmissor da febre amarela no Nordeste. Propagou-se pelo  Brasil todo e viajou até Amazônia, onde hoje é um alienígena em meio à  diversidade local.
  
 Entre os invasores terrestres, a pior ameaça vem da África e atende pelo nome de caramujo-gigante (Achatina fulica).  Desembarcou em terras brasileiras trazido por criadores de fundo de  quintal, que, mesmo sem autorização dos órgãos oficiais, esperavam que o  consumidor adotaria o falso escargot como item alimentar. Mas  foi tudo miragem: o caramujo nem chegou aos cardápios dos restaurantes e  os criadores, frustrados, deixaram milhares escaparem para o meio  ambiente. Da Mata Atlântica ao Cerrado, das regiões costeiras até a  Amazônia, hoje eles estão em 22 Estados e ameaçam tanto terras  particulares como parques e reservas. Seus impactos são devastadores: o  caramujo ataca lavouras de hortaliças, compete por alimentos com  moluscos nativos e pode transmitir doenças ao homem, transformando um  problema agrícola num caso de saúde pública. 
  
 Em abril deste ano, o Instituto Brasileiro de Meio  Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) iniciou um programa  modelo de combate ao caramujo no município de Parnamirim, RN, baseado na  mobilização comunitária, na catação manual do caramujo pelos moradores  das áreas afetadas. De baixo custo e com bons resultados, o programa  interessou às prefeituras de várias cidades. Onze prefeituras do  interior paulista devem implantá-lo ainda em 2004 e, em Recife e Manaus,  o trabalho já começou. "Trata-se da união entre o governo federal, as  prefeituras e as comunidades na tentativa de reverter um problema que  está no quintal dos brasileiros e que precisa de uma resposta imediata",  diz o diretor do Ibama, Rômulo Mello. 
  
 Bem maiores, mais rápidos e agressivos que os  caramujos, os javalis ignoram barreiras e avançam como uma das mais  preocupantes espécies invasoras no Brasil. Chegaram à América do Sul por  volta de 1904, trazidos da Europa para o pampa argentino como uma opção  de caça. Em 1928, alguns indivíduos foram levados para Colônia, no  Uruguai, com a mesma finalidade. Livres, os javalis se dispersaram e  chegaram até a fronteira com o Rio Grande do Sul. Em 1989, a estiagem  baixou o leito do rio Jaguarão, na divisa, e os javalis passaram para o  território brasileiro. Sem predadores naturais,  reproduziram-se aos milhares e se disseminaram para o norte, por todos  os Estados da região Sul e interior de São Paulo, Mato Grosso do Sul e  Minas Gerais. Os produtores rurais são os mais prejudicados. 
  
 Os javalis atacam rebanhos e plantações, em busca de  alimento. Nos ecossistemas, de acordo com o biólogo André Deberdt,  estudioso do assunto, o pisoteio desses animais mata plantas nativas,  causando desequilíbrio entre as espécies arbóreas e danificando os  sub-bosques, dentro das matas. Os javalis, explica ele, também oferecem  risco a populações humanas e animais domésticos, por serem transmissores  de febre aftosa, leptospirose, teníase, cistocercose e raiva silvestre.  Desde1998, o Ibama proíbe a abertura de novos criadouros no Brasil. E,  até maio de 2005, liberou o abate dos javalis no Rio Grande do Sul, em  caráter experimental, numa tentativa de controlar a população selvagem.
  
 Bem mais ao norte, em plena Reserva Biológica do  Guaporé, em Rondônia, milhares de búfalos exóticos circulam livremente  onde a lei não permite nem assentamentos humanos. Levados para lá na  década de 80 como alternativa econômica, eles romperam as cercas e  invadiram áreas importantes para a conservação ambiental. Os rios da  reserva estão comprometidos, no solo pisoteado já não crescem plantas e  os buritis, palmeiras típicas da região, já desapareceram da paisagem,  sem que ninguém saiba como tirar os invasores de lá, vivos ou mortos.
  
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 Invasores nativos
  
 A falta de critérios na hora de soltar animais  capturados em ações de fiscalização dos órgãos ambientais também é uma  das principais fontes de contaminação biológica nos ecossistemas.
 Se capturados em suas áreas de origem e soltos em  outras, onde não ocorre a espécie, os animais transferidos passam a  competir com os residentes e podem disseminar doenças inexistentes  naquele meio, causando impactos negativos no ecossistema. A soltura do  sagüi-de-tufo-branco (Callithrix jacchus), na Floresta Nacional  da Tijuca, no Rio de Janeiro, é um exemplo de introdução indevida e, por  que não dizer, até criminosa. Nativo do Nordeste, ele coloca em risco a  sobrevivência de outros primatas nativos, incluindo o mico-leão-dourado  (Leontopithecus rosalia), que vive a centenas de quilômetros da capital carioca e de cuja população restam apenas mil indivíduos.
 Casos assim levaram o Ibama a realizar, no início  deste ano, um encontro de especialistas, para definir as normas de  soltura. As recomendações devem virar lei em 2005, exigindo que, no  mínimo, os órgãos responsáveis por animais apreendidos realizem estudos  prévios sobre a segurança do meio ambiente nas introduções e  reintroduções.
  
 "Além da competição entre as espécies, as solturas  feitas a esmo podem introduzir doenças na natureza", explica Juciara  Elise Pelles, do Ibama. "Transportados juntos, animais capturados do  tráfico muitas vezes trocam vírus e bactérias entre si. Quando são  soltos sem a devida quarentena, eles podem propagar doenças e contaminar  animais sadios, comprometendo o equilíbrio ambiental". Segundo ela, se  houvesse estudos para acompanhar os efeitos pós-soltura no Brasil,  teríamos uma desagradável surpresa.
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